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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Antigamente (II)



Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem tugir nem mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo-d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de treteiro de topete: depois de fintar e engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: quem somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.

Bom era ter  costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de perlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia o doutor pomada, todo cheio de nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era um doutor da mula ruça, um pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméia, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.

Em compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está falando, o sangue-de-barata, o Dr. Fiado que morreu ontem, o zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras... Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou, simplesmente, a bota, sem saber como descalçá-la.

Mas até aí  morreu Neves, e não foi no Dia de São Nunca de Tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?

(Carlos Drummond de Andrade)




Significado de algumas dessas expressões:

. cair nos braços de Morfeu: adormecer (Morfeu era o deus do sono)
. pirralhos – crianças
. sem tugir nem mugir – sem reclamar
. debicar os mais velhos – desrespeitar os mais velhos
. levar uma tunda – levar uma surra
. não entender patavina – não entender coisa alguma
. convescote – piquenique
. pôr as barbas de molho – esperar pacientemente
. engambelar os coiós – enganar os tolos
. o diacho eram os filhos da Candinha – o problema eram as más línguas, o povo
. acabar na rua da amargura – ficar na miséria
.  ficar na pindaíba – ficar na miséria
. vidro de cheiro de marca barbante – vidro de perfume barato
. pé-rapado – pobretão
. moçoila – mocinha
. nutrir xodó, estar de rabicho – estar apaixonado
. perder as estribeiras – perder a calma
. que vida supimpa a do degas! – vida supimpa =  vida do degas = vida boa
.pregar pela – mentira
. até aí morreu o Neves – até aí, nenhuma novidade
. nem sequer botou fumo no chapéu – não se importou
. não era sangria desatada – não era problema sem solução
. caía das nuvens – decepcionava-se
. bater com o rabo na cerva ou bate as botas – morrer



COMENTANDO O TEXTO:

A variação da língua no tempo  pode constituir uma dificuldade para a comunicação. Como podemos perceber, Drummond construiu toda sua crônica a partir de expressões populares que, muito utilizados “antigamente”, são pouco usadas hoje em dia. Portanto, se lermos esta crônica  para nossos avós ou para outras pessoas idosas, eles terão muito mais facilidade em entendê-la do que nós.

Bem sabemos que muitas dessas  expressões já caíram em desuso e por isso dificulta a compreensão da mensagem, ainda que escrita em nossa própria língua.  Trata-se de mais um excelente texto de Carlos Drummond de Andrade.

Maria A. Paiva Corá



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