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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

OS PATOLÓGICOS (fábula de Millôr Fernandes)


A estupidez parece se desenvolver tão bem quando a lucidez.

Uma bela pata, das antigas, que acreditava na prole e na responsabilidade familiar (1), acabando de dar à luz uma maravilhosa ninhada de quatro patinhos, e preocupadíssima com sua educação rápida - e eclética - num mundo em que a competição é verdadeiramente patológica (2), levou os filhinhos, certa manhã, à beira dum lago, para que iniciassem suas aulas de natação, prática fundamental ao orgulho da espécie (3).

-Vejam só, amados filhinhos! - disse ela, depois de verificar com uma das patas se a temperatura da água era adequada. - Reparem bem a maneira correta e elegante de entrar na água (4).

Dizendo isso, atirou-se na correnteza, espadanando água pra todos os lados e começando a nadar, no que supunha o supremo da elegância (5). E ficou boiando, esperando, bobamente feliz (6), que os filhos a acompanhassem.

Mas os patinhos, em vez de acompanharem a mãe, numa natural compulsão bioecológica, permaneceram na margem onde estavam, dando risadinhas e tapando a boca, virando a cara para rir mais, numa atitude estranha e flagrantemente desrespeitosa. A mãe, severa, apelou para o máximo de sua autoridade moral, berrando para que todos a acompanhassem. Ao que o mais atrevido dos patinhos, feito porta-voz dos outros, dirigiu-se a ela da seguinte maneira (ora, vejam só!):

- Mãe, você deve mesmo ser uma velha supremamente idiota supondo que vamos arriscar nossas vidas tão tenras dessa maneira primária e amadorística, mergulhando em apnéia quando já existem aparelhagens maravilhosas, de proteção total. Que você não tenha aprendido nada através da existência, não entenda bulhufas de pressão e descompressão, e não saiba o risco que corre se atirando in natura num elemento estranho e imprevisível, ou está se arriscando porque sabe que lhe resta muito pouco tempo de vida, é problema seu. Mas nós, os jovens de hoje, não nos atemos nem à filosofia do absolutismo biossocial, nem às besteiras de condicionamento genético. Nos recusamos ao teste sem salvaguarda adequada. Isso que você demonstra pode ser coisa absolutamente individual. Flutua confortavelmente é verdade (apesar do seu peso, gorda como está, mais para pâté de foie gras do que pra Silvia Pfeiffer), mas isso pode não acontecer conosco. Nos atirarmos à água pode ser fatal. Portanto, madame, esteja certa de que só aceitaremos essas experiências aquáticas a partir de conhecimento mais profundo (o duplo sentido é involuntário), do líquido elemento. No momento, porém, dispensamos sua orientação e permanecemos seguros, aqui em terra. Tchau, bela!

Terminando, o patinho líder, seguido dos irmãos, saiu correndo, veloz e alegremente, em direção à granja. Mas, quando iam atravessando a estrada, foram todos esmagados por um caminhão.

MORAL: Quase sempre a gente evita o perigo errado.

________________________________________

(1) Família nuclear.
(2) Perdão!
(3) Todos já ouviram falar em “nada como um pato”.
(4) Não existe maneira correta de entrar na água. Não existe maneira correta de fazer coisa alguma.
(5) Vocês já ouviram falar em “parecia uma pata choca”?
(6) Existe alguma felicidade que não seja boba?


Nota: Ao acabar de ler o texto de Millôr Fernandes, Os Patológicos, o que nos fica é seu assunto central e a impressão que nos causou. Numa releitura mais cuidadosa, encontramos detalhes interessantes.

Logo que nascem os seus  patinhos, a pata decide levá-los para suas aulas de natação.  A mãe age assim porque ela era uma pata das antigas, daquelas que acreditam na sua responsabilidade diante dos filhos. Ela estava temerosa com o bom desempenho dos filhos em uma sociedade como a dos dias atuais.

É interessante quando observamos  a nota número 2.  O narrador pede desculpas porque ele acaba fazendo trocadilho com a palavra “patológico” ( que se refere a doença), aproveitando o fato de que nela há também “pato”, mas não tem nada a ver com os patos.

Mas como explicar: a “competição é verdadeiramente patológica”?  Significa dizer que seus competidores se atiram a ela de forma doentia, obcecada.

Bem, chega por  hoje.

Shalom!

Maria Paiva Corá


Um comentário:

  1. A gente sabe que essa resistência dos mais jovens aos conhecimentos dos mais antigos não tem nada de novo.

    O que tem de novo é que os mais jovens, cada vez mais, aprendem as coisas mais depressa.

    A lição que parece prosperar é que, nos dias de hoje e no futuro, o aprendizado deve se dar nas duas vias. Isto é, evitar o preconceito do que é velho e o que é novo.

    Muito bem escolhido o texto do Millôr.

    Abração.

    Pedro Paiva / Brasília

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