Fernando Sabino
Leda. Estavam namorando? Ele não saberia dizer: emprestou-lhe um livro chamado “Travessuras de Juca e Chico”. Muito engraçado. Leda leu, achou muito engraçado, devolveu com uma manchinha de manteiga.
- Desculpe.
- Não tem importância é para manchar mesmo.
- Por que você não põe capa? Eu encapo todos os meus livros.
- Eu não.
- Pois eu sim. Sou a primeira das meninas. Você não é nem o quinto ou o sexto dos meninos.
Ser o primeiro. Ficava em casa estudando, fazendo exercício. Dona Estefânia, estranhando, maravilhada:
- Não sei o que deu nesse menino. Agora é isso toda noite. Eu não dizia? Eu não dizia?
- Dizia o quê, mulher? – resmungava seu Marciano.
- Que ele endireitava? Verdadeiro milagre.
Milagre do amor. Amava Leda, mas não ousava sequer pensar em beijá-la. Beijo não era bom assim feito diziam. Amando em silêncio. Às vezes se declarava:
- Leda, eu gosto muito da sua letra.
- Leda, eu gosto muito do seu estojo.
- Leda, eu gosto muito.
De noite, dormia abraçado com ela, era bem melhor. Leda cariciosa, Leda travesseiro. Iniciava-se naquilo que iria ser, vida a fora, o motivo de suas horas mais alegres e mais miseráveis: imaginava tudo – passeios, conversas, piqueniques, banho na piscina. Um dia salvou-a de morrer afogada. Leda tinha piscina em casa. Leda era queimada de sol, devia ser branquinha debaixo do vestido – imaginava tudo. Um dia imaginou um presépio.
- Papai quero fazer um presépio.
Era Natal. O pai ajudou Eduardo a fazer o presépio - seu Marciano mesmo ajeitou o papel fingindo de montanha, serrou a madeira, colocou o espelho, fingindo de lago, com dois patinhos de celulóide, trouxe da cidade as figuras. Eduardo compareceu com dois soldadinhos de chumbo, espingarda ao ombro, para montar guarda à manjedoura. Mas a finalidade última – chamar Leda para ir ver – não foi atingida. O menino não teve coragem e foi melhor assim. Na casa dela havia de ter um presépio muito mais bonito. E achava a sua casa velha demais para ela: tinha um vidro partido da janela da sala, a pintura do lado de fora da sala descascando – a sala de jantar mesmo era antiquada, móveis velhos e gastos – era preciso reformar os móveis, reformar a casa, reformar o mundo, para merecer a presença de Leda.
Nota: Estamos diante de um texto narrado na terceira pessoa. Os personagens centrais são Eduardo e Leda.
Eduardo começou a estudar mais do que costumava. Essa foi a mudança do comportamento dele que impressionou a sua mãe. E a causa de tal mudança foi o “milagre do amor”. Eduardo “desligava-se” da realidade exterior através da imaginação.
A fuga pela imaginação é uma das características marcantes da personalidade de Eduardo: “Iniciava-se naquilo que iria ser, vida a fora, o motivo de suas horas mais alegres e mais miseráveis...”.
Ocorre aqui a idealização da mulher: Eduardo idealizava a figura de Leda. Ele foge da realidade através de sua imaginação. Seu comportamento baseia-se, sobretudo na emoção. Podemos então concluir que o amor é supervalorizado por ele.
Então, podemos ver que Eduardo, a personagem central da narrativa lida, apresenta, fundamentalmente, as seguintes características psicológicas:
- seu comportamento é baseado, sobretudo na emoção;
- evade-se da realidade através da imaginação;
- ele supervaloriza o amor.
Essas são as características do estado de alma romântico. Trata-se de um modo de sentir e interpretar a realidade e de um modo de agir. Esse romantismo (modo de sentir a realidade, estado de espírito) difere do Romantismo (estilo de época). Como estado de espírito, modo de sensibilidade, tipo de comportamento, o romantismo caracteriza-se por uma atitude profundamente emotiva diante da vida, e pode surgir em qualquer momento histórico, não estando sujeito a datas. Por isso, pode refletir-se na produção artística de qualquer época. Na literatura, por exemplo, o comportamento romântico aparece registrado desde a Antiguidade até os nossos dias.
Mulher com turbante, do pintor romântico português Domingos Antônio Sequeira.
Já o Romantismo entendido como estilo de época diz respeito à tendência geral da vida e da arte que predominou na Europa durante a primeira metade do século XIX. Nesse caso, o nome Romantismo designa um estilo artístico delimitado no tempo.
Diante do exposto, fica claro que é possível ocorrerem manifestações da sensibilidade romântica até em obras de nosso século, como vimos pelo texto A Primeira Namorada, de Fernando Sabino – publicado pela primeira vez em 1956. [Maria Paiva Corá]
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