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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

INFERNO NACIONAL






Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. [...] Ao morrer nem conversou: foi direto para o Inferno. Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e perguntou:

- Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos  departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrativo pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o Departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no Departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime.

- Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de 200 graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de 100 graus abaixo de zero até às três horas, e voltar ao forno de 200 graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamentos era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo o lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de 200 graus durante o dia e geladeira de 100 graus abaixo de zero, pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

- Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de 35 graus por dia.

- E as quinhentas chibatadas? Perguntou o falecido.

- Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.

                                                                                                            Stanislaw Ponte Preta




CONVERSANDO SOBRE O TEXTO

Esta  história   surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá numa versão política. Não é o nosso caso aqui, porque ela será contada  no seu mais puro estilo folclórico.

Logo no começo, no  primeiro parágrafo já podemos  observar a presença de eufemismo (quando queremos atenuar uma idéia ou fato desagradável e procuramos substituir a palavra ou expressão que a traduz por outra mais suave): “Abotoou o paletó”, suavizando a idéia de morte, que acaba dando mais humor ao texto.

Podemos notar que o principal desejo do personagem central era encontrar, dentro do inferno um departamento menos rigoroso. E assim o personagem vai agindo para satisfazer seu desejo, como sair à procura de um departamento menos severo. Mas acaba encontrando um obstáculo: quase todos os departamentos seguiam o mesmo esquema.

O primeiro departamento visitado pelo personagem foi o dos Estados Unidos, pois achou que encontraria por  lá um inferno organizado  mas  acaba desistindo de freqüentar o departamento daquele país, por  achar muito rigoroso, com penas muito severas.  Infelizmente  hoje muitas pessoas acreditam que a vida nos Estados Unidos é muito melhor do que em seu país de origem e acabam se dando mal.

Podemos observar que a  organização dentro do inferno obedecia a regras comuns e preestabelecidas: “Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamentos era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo o lugar o regime era o mesmo (...)”.

Ao observar a fila na porta do departamento brasileiro, o personagem pensou: "Aqui tem peixe por debaixo do angu", ou seja,  há algo oculto por aqui. Para não chamar a atenção, o colega de fila do departamento brasileiro falou baixinho, pois tinha medo de chamar a atenção. Provavelmente  temia que alguém descobrisse que as coisas não funcionavam bem naquele lugar  e que resolvesse torná-lo igual aos demais departamentos.  Ao esclarecer os motivos de haver uma fila tão grande naquele  departamento, revelou também   duas críticas comuns feitas em relação ao Brasil: Que as coisas nunca funcionam direito por aqui e que os funcionários públicos nunca trabalham.

Outra expressão bastante popular que poderia ter sido usada pelo personagem, no sétimo parágrafo,  com o mesmo significado de   “Pensou com suas chaminhas”,  seria   “Pensou com seus botões”, que tem o mesmo significado de pensar, de refletir.

Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Marcus Rangel Porto (11 de janeiro de 1923 - 30 de setembro de 1968, Rio de Janeiro); foi um cronista, escritor, radialista e compositor brasileiro.


Stanislaw Ponte Preta geralmente emprega linguagem coloquial em seus textos cômicos. É esse coloquialismo que confere maior dose de humor. No texto podemos retirar pelos menos cinco  exemplos de uso de linguagem coloquial: “Abotoou o paletó”, “Qual é o lance aqui?”, “O falecido ficou besta”, “Tratou de cair fora” e  “Fica na moita”.

O texto “Inferno nacional” faz uma boa critica, por meio do humor, de algumas características bem brasileiras,  como por exemplo que o funcionário público é alguém que não gosta de trabalhar e que só se preocupa com o seu salário (“... assina o ponto e cai fora”). Qualquer semelhança não é mera coincidência...


Shalom!


Maria A. Paiva Corá


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