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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

PAUSA



Mário Quintana


   Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou na feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se parecem os óculos sobre a mesa.

   Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?

   Com algum ciclista tombado?

   Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parecem mesmo?
   E sinto que, enquanto eu não puder captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.

   E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara ao meu Dom Quixote que uns óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois – Dom Quixote ou Sancho? – vive uma vida mais intensa e, portanto mais verdadeira…

   E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.

   Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor.

   E agora?

   Por enquanto, ante a atual  insolubilidade da coisa, só me resta citar o terrível dilema de Stechetti:

    “Io sonno un poeta o sonno un imbecile?”

   Alternativa, aliás, extensiva ao leitor de poesia…

   A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.

   E daí?

   – Mas o melhor – pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança – , o melhor é repor depressa os óculos no nariz.


A vaca e o hipogrifo. São Paulo,  Círculo do Livro.




                                         MÁRIO QUINTANA (1906-1994)

                                         Poeta sul-rio-grandense. Buscando sempre uma poesia simples e                                             despojada, publicou mais de uma dezena de livros.


NOTA:  Nesta pequena crônica, Mário Quintana reflete sobre suas atividades de escritor e de leitor de poesia. O tema do texto é colocado de maneira direta e, aparentemente, até simplista: escrever e ler poesia não é uma grande perda de tempo? E, radicalizando, pergunta com Stechetti: escrever e ler poesia não é uma imbecilidade?

O autor interrompe  as duas atividades ao pousar os óculos sobre a mesa: a leitura de obras alheias (“leitura de coisas feitas”) ou a criação de suas próprias obras (“feitura de minhas próprias coisas”).

As imagens que ocorrem ao poeta ao contemplar os óculos sobre a mesa é a imagem de um inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas e a de um ciclista tombado.

A inquietação provocada pela necessidade de captar a “imagem-poema” dos óculos leva o autor a pensar em sua profissão de escritor e de poeta. Mais ainda que isso,  leva-o a pensar na função da poesia. Seu senso comum (Sancho Pança) entra em conflito com o seu senso poético (Dom Quixote).

Segundo o senso comum, os óculos são apenas aquilo que parecem ser: duas lentes fixadas em uma armação.

Segundo o autor, existe em nós a necessidade de recriar as coisas e a vida em imagens para que as coisas tenham mais vida e para que a vida seja vivida mais intensamente.

O autor não consegue explicar essa necessidade. Para ele essa necessidade é um “eterno mistério” – um “enigma”.

Diante da “insolubilidade da coisa”, o autor resolve passar o problema para o leitor. Segundo ele, o poeta não tem a função de resolver e sim de propor enigmas: de fazer o leitor pensar, e não de pensar por ele.

“...o melhor é repor depressa os óculos no nariz” é o conselho dado para o leitor, significando o  senso prático  do autor aconselhando-o a retomar o trabalho e deixar de lado as questões insolúveis como a função do poeta e da literatura que lhe ocorrem à mente. [Maria Paiva Corá]





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