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terça-feira, 24 de abril de 2012

Poema em linha reta






Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
(…)

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Poema de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa )

Fernando Pessoa, poema do livro “Poemas de Ávaro de Campos”, edição de Cleonice Berardinelli. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, ps. 234 e 235.)


Assistia ao vídeo abaixo. Trata-se de uma cena da novela  O Clone (2002). Osmar Prado recita o  "Poema em linha reta" e dá um show de interpretação. É a cena perfeita. Sensacional!




Análise do poema

Fernando Pessoa é o mestre dos heterônimos,  ele acreditava que "o poeta é um fingidor". Álvaro de Campos é seu heterônimo. Ele  é o poeta urbano, das grandes cidades, agredido pelos conceitos, preconceitos e correrias do homem moderno.


O poeta inicia o texto ironizando uma peculiaridade do comportamento humano: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada.”  É interessante porque as pessoas costumam divulgar suas virtudes, vitórias, e não defeitos e derrotas.

A repetição do pronome pessoal “eu” transmite ao texto a ideia de unicidade, como se realmente tudo o que o poeta coloca dissesse respeito somente a ele mesmo.

Ao escrever, Ideal, na quarta estrofe,  o eu poético transmite a ideia da grandeza e da certeza com que as pessoas se colocam.

O poeta caracteriza as pessoas a quem se refere como  príncipes, semideuses e superiores.

Quanto ao conteúdo Álvares de Campos se preocupa apenas com as atitudes humanas. Ele mostra  uma linguagem  agressiva.


Maria A. Paiva Corá



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