Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em
tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,
tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência
para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo,
absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos
tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e
arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais
ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos
moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras,
pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho
agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas
coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste
mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes
– na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma
cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que
uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
(…)
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido
traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem
titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Poema de Álvaro de
Campos (heterônimo de Fernando Pessoa )
Fernando Pessoa, poema do
livro “Poemas de Ávaro de Campos”, edição de Cleonice Berardinelli. (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, ps. 234 e 235.)
Assistia ao vídeo abaixo. Trata-se de uma cena
da novela O Clone (2002). Osmar Prado
recita o "Poema em linha reta"
e dá um show de interpretação. É a cena perfeita. Sensacional!
Análise do poema
Fernando
Pessoa é o mestre dos heterônimos, ele acreditava
que "o poeta é um fingidor". Álvaro de
Campos é seu heterônimo. Ele é o poeta
urbano, das grandes cidades, agredido pelos conceitos, preconceitos e correrias
do homem moderno.
O poeta inicia o texto ironizando uma
peculiaridade do comportamento humano: “Nunca
conheci quem tivesse levado porrada.” É interessante porque as pessoas costumam
divulgar suas virtudes, vitórias, e não defeitos e derrotas.
A repetição do pronome pessoal “eu” transmite ao texto a ideia de
unicidade, como se realmente tudo o que o poeta coloca dissesse respeito
somente a ele mesmo.
Ao escrever, Ideal,
na quarta estrofe, o eu poético
transmite a ideia da grandeza e da certeza com que as pessoas se colocam.
O poeta caracteriza as pessoas a quem se refere
como príncipes, semideuses e superiores.
Quanto ao conteúdo Álvares de Campos se preocupa
apenas com as atitudes humanas. Ele mostra uma linguagem agressiva.
Maria A. Paiva Corá
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